I - Be Prepared!

 


— Ahhh! - me espreguicei, bocejando. Ao entreabrir os olhos, esperava estar no cubículo que havia estruturado para Laocoonte. Esta era a minha grande cobra, uma das várias da família. No passado, meu pai contou-me que cada Jovem Mestre ganhava uma cobra. Estas foram especialmente treinadas por profissionais e, propositalmente, apesar de terem sido domesticadas para não atacar seus amos - é o que se diz - elas não os obedecem. O Patriarca e os Anciões da família dizem que um Jovem Mestre só estará pronto ao obter o reconhecimento destes animais, sendo esta uma tradição antiga da família. E, até hoje, eu nunca consegui fazê-la me obedecer, ainda que, às vezes, sentisse certo afeto em relação a mim. Talvez ela só se acostumou com a minha presença?

Havia tirado um cochilo em cima dela - o que nunca a incomodou por todos esses anos - e, ao terminar de me alongar, alisaria suas escamas — Já trago um lanche para você - esticava o pescoço de um lado para o outro, me erguendo do chão, com as mãos repousadas nas pernas. Por que dormir em cima de uma grande sucuri? O Segundo Ancião da família que me deu esta dica; quanto mais tempo eu estiver próximo e em contato com ela, mais fortes os nossos laços se tornariam. Ao relembrar, olharia para Laocoonte; "Mas não vejo nenhuma diferença nos últimos anos... a última vez que notei uma mudança, foram nos meses logo após o meu primeiro contato, em que ela me serpenteava, como se fosse um pedaço de frango" - aqueles dias tinham sido deveras aterrorizantes. Hoje, no entanto, nem que ela me enlaçasse conseguiria me ferir.

Isso porque, com essas mãos - olharia para elas - eu havia conquistado força o suficiente para me virar. Para seguir o meu próprio caminho...  "Foi o meu pai que..." - franzi os lábios, meneando a cabeça e deixando o pensamento para lá, enquanto andava em direção à porta — Calma, calma - falaria, indo em direção à cozinha e pegando um dos pedaços de frango cru que deixava guardado, no fundo da gaveta; com a outra mão, pretendia pegar alguma fruta e uma garrafa d'água, me servindo pelo caminho. Em mãos, voltaria até o viveiro e jogaria a refeição lá — Bom apetite! - mordiscaria a minha própria comida, indo até o meu próprio quarto.

"É hoje?" - me indagaria, olhando para o calendário. Com um suspiro, confirmaria. "É, creio que sim" - tiraria uma das túnicas da minha família e vestiria. "Não faz mal causar uma boa impressão" - com ela em corpo, pegaria o meu celular, de onde quer que tivesse largada-o, colocando-o no bolso. "Táxi?" - ponderava. Não, preferia estar aquecido. Para um dia tão importante, era melhor que os meus músculos já estivessem engrenados.

Destarte, iria para o lado de fora, respirando a primeira golfada de vento fresco com prazer. Passaria algum tempo ali, em frente à casa, me alongando. "Desde que sai de casa, tive que conseguir tudo às minhas custas... esta casa parecia barata, apesar de não ter muitos vizinhos por aqui. Eles tem tanto medo desta Ilha Jeju? - me indagava. Nada havia acontecido até hoje e não acreditava que algo aconteceria; afinal, havia um mar inteiro que nos separava daquelas formigas. Que mal podia acontecer?

"Já tive o suficiente!" - pararia de me alongar, pegando o celular e colocando a rota no GPS para a sede da Draw Axe. "Uma caminhada pode me fazer bem, antes do que quer que eles tenham para me testar" - começaria a caminhar e a correr, tomando cuidado com os pedestres. Não era o suficiente para me cansar e era uma boa prática para manter o corpo saudável - além de não me custar preciosos Kek's.

Havia escolhido a Draw Axe por um único motivo: Hiken. Soube do seu domínio com fogo e de seu estilo de luta, o que havia me motivado a ingressar em sua guilda, a fim que, um dia, pudesse compartilhar ou treinar com ele; afinal, havia despertado com uma habilidade de fogo e ninguém melhor para me orientar em seus usos que o melhor mago elemental de fogo do mundo.

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Sentir o sol sob minha pele era uma das sensações que mais gostava; juntando isso com o frescor da maçã que comia, intercalada de alguns goles d'água, não podia começar o dia melhor. Ao passar pelas calçadas, assentia com a cabeça para as pessoas que passavam por mim e me encaravam. Eram os bons modos que havia aprendido: se alguém te olha, olhe de volte e acene com respeito. Com o miolo da maçã em mãos e a garrada vazia, fiquei tentado a jogar, ao menos o miolo, em qualquer lugar. Só com um suspiro que e mão na consciência que resisti à tentação e caminhei mais, até achar uma lixeira, onde jogaria o lixo fora.

De olho no GPS, vez ou outra chegava a minha rota. "Não falta muito, nesse ritmo, talvez um dois minu..." - minha orelha deu uma leve tremida, como quando os gatos estão no chão e a levantam. Diminui o ritmo da corrida e parei, com a voz eletrônica saindo de meu celular — Calado... - seguraria o botão de diminuir o som, olhando para os lados, com uma sensação estranha. Olharia para o outro lado da rua; para o meu celular, para frente; para trás... até começar a dar alguns tímidos passos para trás, refazendo o meu caminho.

"Eu escutei o que escutei?" - me perguntava. O problema era que sequer sabia exatamente o que havia escutado. Com o cenho franzido, me recordava vagamente de existir um estreito beco ali, do tipo que sequer percebíamos quando passávamos com a ansiedade e celeridade da rotina japonesas. Guardaria o celular no bolso devagar, esgueirando a minha outra mão na entrada do beco e colocando a cabeça de lado, para averiguar, como um curioso faria.

— Há alguém aí? - perguntaria, suavemente, adentrando o beco. Precisava de cautela em lugares como esse e, por isso, estaria com a guarda erguida, com os braços meio levantados, nem tão ofensivos, nem tão desleixados, além do ouvido atento e da visão afiada - o que nós caçadores tínhamos de sobra — Creio ter escutado alguém pedindo socorro - se ninguém se mostrasse ou respondesse, continuaria falando — Não quero problemas, mas se alguém está fazendo algo errado, peço que deixe ir - a esta altura, já havia pensado no que poderia estar ocorrendo, de modo que minha intenção era comprar tempo para que localizasse a posição dos envolvidos. Tendo a oportunidade, propositalmente faria algum barulho, como chutar uma lata de lixo, sem querer, a fim gerar uma reação audível.

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Um assalto?! Como esperado, um barulho mais invasivo denunciou a posição do meliante, o qual não tinha nenhuma intenção de ficar estagnado. Ainda o observava se mover, tentando entender a situação, quando os choros de uma mulher chegaram aos meus ouvidos. É claro, se havia um agressor, havia uma vítima — Ei! Você está bem?! - já avançaria para onde estavam as caixas, em um rápido dash.

A bem de verdade, não estava esperando uma resposta. Como poderia esperar ela se recompor em uma situação desta? Me interessava ver o seu estado, o que faria rapidamente, visualizando-a por completo, de olhos bem abertos, como se uma máquina a escaneasse. Era isto que me levaria a agir, pois se o seu estado de saúde se encontrasse íntegro ou aturável, imediatamente correria atrás do ladrão.

Se ele havia a roubado, poderia ser uma coincidência ou ela tinha algo que ele queria. Não podia neglicenciar esta hipótese e recuperar a bolsa era importante. E não é como se eu tivesse hora marcada, não é? Assim, pulando por cima das latas e desviando das caixas, com as mãos buscando apoio constantemente nas paredes, enquanto corria, pretendia chegar na rua, onde genuinamente pisaria fundo.


— Você! Parado aí! - exclamaria, desviando de possíveis pedestres e veículos. Intentava me aproximar ao máximo do alvo e, quando o fizesse, diminuiria minha velocidade, segurando o seu braço e colocando a palma de minha mão contra o seu peito, forçando-o ao chão — Sem gracinhas - como não queria esmagá-lo contra o concreto, reduziria drasticamente a força nestes últimos momentos, apenas deixando-o imobilizado — Ou não me culpe por ser mal educado - declararia, tomando a bolsa de sua posse.

A região era comumente militarizada e, por isso, esperaria algum guarda ou militar se aproximar, a fim de controlar a situação — Assalto. A vítima está naquele beco - mostraria a bolsa — Irei devolver - rapidamente voltaria ao local, onde entregaria o pertence de volta à dona e a ofereceria um ombro para se sustentar — Irei ao menos te tirar daqui e te levar às autoridades. O que houve? - indagaria, mais para oferecer um ouvido amigo.

No mais, caso observasse que seu estado de saúde estava deteriorado, a ponto de precisar de atendimento médico urgente, deixaria o ladrão fugir e focaria a minha atenção na vítima — Irei chamar uma ambulância! Aguente firme! - colocaria a minha mão sobre seu ombro, enquanto ligaria para a emergência — Preciso de uma ambulância! - informaria a localização, logo após, me identificando — Fique aqui, comigo, não pare de pensar! - seguraria a sua mão, esperando pela ajuda especializada.

Após, não havendo nenhuma pendência, rumaria direito para a sede da Draw Axe, voltando ao auxílio do GPS - que seria desmutado - e à minha caminhada. "Fufu... quem diria que o dia começaria dessa forma". Ainda, se aquele incidente se estendesse por mais tempo, deveria me apresentar — Me chamo Akira... Akira Hikoji - preferia não dar o nome de minha família, mas isso significaria dar-lhe intimidade. "Ahh..." - suspiraria — Você está realmente bem? Se não precisar de mais nada, devo seguir meu caminho! - falaria; e, se ela não tivesse nenhum assunto a tratar comigo, voltaria à rotina.

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O bandido parava no chão e o fitava nos olhos uma última vez, deixando por conta dos policiais que chegavam. Sorte e azar, dizem que os dois andam de mãos dadas. Naquela situação, fortuitamente eu me livrava de um problema, enquanto outro parecia surgir. Não resistiria em ser conduzido pelos oficiais; afinal, eu não tinha o que temer. Havia agido pelo certo e não havia razão para encrencarem comigo — Sem problemas, acompanharei - consentiria, andando junto a ele, sem me incomodar com o fato dele segurar o meu braço.

Mas, se eles faziam questão de tornar isto um problema, eu iria comprá-lo por completo — Todo cidadão pode dar voz de prisão e se ele resistir, posso agir legitimamente para assegurar que as autoridades cheguem, estou errado? Também estou errado em dizer que isso não teria acontecido se vocês tivessem feito o que deveriam? Que esta mulher não estaria assim, se alguém competente estivesse cuidando da segurança dela? Embaixo de seus narizes? - redarguiria, em frente à moça, puxando de volta o meu braço, a fim que ele o soltasse. Com 28 anos nas costas e uma ambição, como eu poderia engolir ameaças vazias?

Assim, daria um passo à frente — Me chamo Akira Hikoji, é um prazer conhecê-la - me apresentaria, por mera formalidade — Infelizmente tenho um compromisso agora e não posso ficar muito mais tempo aqui... - dissimularia. Entretanto, antes de seguir em frente, a dita Lian-Yin estendia a mão — Isso é... - pegaria o cartão, curioso — D-draw... Draw Axe? - franziria o cenho — Estava indo para lá agora mesmo... me candidatar, hahah... - abriria um sorriso amistoso, coçando a nuca, um tanto sem jeito.

Dessa forma, pareceria que eu estava tentando tirar vantagem da situação, mas... o que poderia fazer? Mentir? Por isso estava um tanto encabulado. Porém, eu não havia sido ensinado a perder uma oportunidade. Desde que agisse a com devida honra e integridade, agarrar uma chance é como agem os vencedores; os covardes se escondem e continuam na mesmice. E o que eu faria seria usar de unhas e dentes para não deixar essa chance escapar — Senhorita Lian-YIn - educadamente me referiria a ela, como haviam chamado — Não peço nada em troca do que fiz. Porém, se você está em minha frente, peço que considere uma recomendação e me dê esta chance, pelo que viu hoje, não pelo que fiz a você. Estava passando na rua e escutei algo estranho, por isso vim averiguar. Não sabia exatamente do que se tratava, então resolvi fazer algum barulho inesperado, mas inofensivo, pra que causasse uma reação e pudesse estimar o que, quem e quantos eu teria que lidar. Além do sucesso em prendê-lo - juntaria as mãos, fazendo um gesto de respeito perante ela — Sei que não é muito para um caçador, mas também não é pouco. Por isso que apenas peço uma chance para poder mostrar mais, no ambiente apropriado - completaria.

Um tanto apreensivo, mas controlado, esperava que me fosse concedido ao menos esta pequena chance. Sabia que não era fácil caçadores de Rank C entrarem nas maiores guildas, visto que elas estavam lotadas destes; apenas alguém acima da média, neste rank, conseguiria um cargo - é o que escuto — Mas talvez, antes, devêssemos sair deste lugar...? - questionaria. Resolver algo ali, no meio da sujeira e na escuridão passava longe de ser um local adequado.

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O que estava fazendo? Um monólogo?! Só após acabar de falar que tomava nota da má impressão que podia ter causado. "É mais difícil falar direito quando é uma mulher bonita..." - suspirei, esperando que ela não se importasse. Com quantos anos estava? 28! E solteiro! Era esse o tipo de vida que eu queria para mim? Envelhecer solitário? Morrer sozinho? Balancei a cabeça, em negação, piscando os olhos algumas vezes e recobrando a sanidade — Um favor? - o que seria? Não, não seria nada disso, ela não é uma donzela em perigo que se apaixonaria pelo príncipe; eu não sou um príncipe.

E qual seria o problema de envelhecer solteiro? Arranjar uma esposa é algo que a minha mãe me falava desde pequeno. "Você deve se casar com uma grande mulher e ter uma linda família" - ela repetia constantemente. Às vezes isso chegava a me irritar tanto que batia a porta com força ao sair. Uma vez, até gritei: "Como se eu fosse casar com uma menina!" - e ela riu de mim. Outras vezes, me perguntava, seria tão ruim assim? Hoje em dia essa segunda pergunta é muito mais frequente. Já faz um tempo que eu não sinto nada como uma paixão, ou algo assim, sequer afeto. Suspirei fundo, me dando conta que havia-a deixado falando só — Claro! Faço, sem problemas - concordei. "O que ela me pediu?!" - estava tão absorto que sequer me liguei.

Bem, não iria perguntar novamente o que ela queria; então, por ora, apenas a seguiria, até que falasse sobre novamente. "Que situação..." - não queria passar vergonha em frente a ela. Assim, continuaria o meu caminho junto a ela, observando o GPS. "Estamos perto da sede da Draw Axe... Será que..?!" - olharia para ela. Estava mesmo me levando até a guilda?! A ficha só caiu ao chegar ao local e ela falar — Ir até a sua sala? - Céus! Havia feito bem em agarrar essa oportunidade.

Lá, tomaria cuidado para não encostar em nada e estragar tudo, razão pela qual ficava em pé, até que ela me pedisse para sentar — Sentar, claro - meneei a cabeça, ainda desconcertado. Precisava voltar para o mundo real! — Não há problema um brutamonte sentar aqui? - indagaria. "Ela acabou de falar de forma pejorativa aos brutamontes... o que eu tô fazendo?!" - sim; o que estava fazendo? Uma piada? Não. Estava tentando flertar com ela?! Aposto que ela diria que não. Eu? Flertar? Estava sendo estúpido; e só.

Mais uma vez, suspirei fundo, tirando a minha documentação da carteira e esticando para ela, parando no meio do caminho — Rank C. Sem experiência em portais... - era esta a realidade. Estava querendo dar um passo maior que as pernas; estava querendo muito mais do que merecia. Era mesmo para eu estar aqui? Neste momento, a silhueta de meu pai aparecia em minha mente, com a voz que parecia sair de uma fita de gravação, com seus memoráveis dizeres: "Não apareça na minha frente se não consegue ser o melhor da sua idade em algo tão simples" - aquelas palavras que me marcaram por tanto tempo. Não era isso que estava fazendo agora? Aparecendo em frente a Lian-Yin, a qual acreditava que eu podia fazer o teste, quando, na verdade, eu sequer tinha experiência em dungeons? E suas palavras eram claras, apenas um Rank B valia a pena; Ranks C não eram o suficiente.

Franzi os lábios. Esta era uma sensação que sempre me assombrava. Acreditava que podia seguir o meu próprio caminho, mas o sangue que corria em mim já sabia muito bem da verdade; claro, porque era o mesmo sangue dele. Conviver com o sentimento de nunca ser o suficiente; ver os meus esforços nunca sendo o bastante... "Calma no coração e coragem no espírito" - era o que o Mestre Nobuo repetia em diversas de suas aulas. Ele sabia de meus problemas, de minhas fraquezas, pois havia visto através de meus olhos. Suas palavras eram tudo que eu precisava neste momento. Estiquei mais o braço, repousando os documentos em frente a Lian-Yin e assinando o contrato¹— Não decepcionarei. Só me diga quando e onde e eu estarei lá... e serei o melhor - declararia, com meu espírito queimando nos olhos. Eu não ficaria para trás; não desta vez.

¹ Sim, sem ler, podia sofrer um golpe e perder meus órgãos, mas é isso que caçadores fazem, não leem porr* nenhuma

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